Por que botas? Casacos? Luvas?
Há algo de predatório em roupas feitas para durar: parecem usar de nossos corpos para acumular uma memória incessante e sem dono, errática. Há uma energia gorgônica em uma coisa que resiste. Ou seja, em algo presente, numa presença. Uma roupa que não pode esmorecer da noite para o dia não deve apenas recobrir figuradamente a pele, mas suportar a autonomia do movimento cego de músculos e ossos, bem como a insistência de suas secreções.
Sinto com frequência que meu olhar pouco pode conviver com presenças. O risco de petrificar é constante, porque tudo se posta, hoje, demasiadamente de frente, a potência dimensional do mundo, seu panejamento, se reduz a uma só, a de um desejo sem mediação, estéril. Um desejo que não suporta a própria anatomia, que não sai do ego e perde o tato. E sem tato as coisas já não revelam nada, nem a si mesmas. Nós apenas as alcançamos ou abandonamos. Não há textura. Quando o tato não sabe medir e criar distâncias e aproximações, a beleza se refugia nos cabelos da medusa.
Quero criar em mim olhos que possam presentificar, e também aguentar, aturar, conviver com o que se presentifica para mim. Sinto desde muito cedo que é a partir do desenho que eu devo seguir essa minha vontade, mas o caminho poderia ter sido outro. Boa parte do desenho eu faço às cegas. Arregalo meus olhos para a coisa que estou desenhando até sentir a esfericidade deles em contato com o ar, agindo no ar como o fogo tocando o diáfano aristotélico. Antes de prosseguir preciso fazer um comentário: há algo de ridiculamente sagrado num comprometimento integral. Sinto que estou pronto para desenhar quando fico à vontade com esse elemento ridículo, quando não me importo que me vejam no meu transe, e mesmo desejo que me apanhem nele. A devoção é um extremo bom humor. O bom humor é aceitação incondicional dos limites, é uma liberdade extrema no saber suportar-se. Na entrega erótica sabemos que a permanência do mundo nasce em nossos próprios músculos, depende da velocidade com que circula nosso sangue, com que vertemos nosso suor. Sabemos então que o mundo não está perdido. 
          O próximo “passo” é desviar meus olhos da coisa. Ou melhor: parto dela usando o ar e os meus olhos num impulso em direção a minha memória dela. Então sinto como devo tatear e tateio. Acredito em inspiração, na inspiração de Agnes Martin, porém às vezes ela não vem fácil. Começo a rabiscar o papel de maneira aleatória, coloco as figuras em lugares improváveis, e esse é meu modo de esperar que ela chegue, de evocá-la. Quando ela vem, sinto que estou desenhando dentro de mim, dentro da minha memória da coisa, e nesse espaço eu a acolho como tem de ser. Só então posso verdadeiramente sair de mim. Frequentemente sinto que devo golpear o papel com muita força e velocidade com a borracha, ou com a trincha cheia de solvente. É como se estivesse tentando acompanhar, no meu gesto de apagamento, a velocidade incomparável do desaparecimento daquela coisa em mim. Volto a olhar. Cravo os olhos na coisa. E então posso traçar uma linha no papel que é irrepetível: não representa, mas faz o mundo aparecer desde a matéria mesma do meu esquecimento. Rilke diria que somos, entre as coisas que desaparecem no mundo, as que mais desaparecem, porque além disso nós esquecemos e somos esquecidos. É aí, contudo, que se esconde o mistério da presença, e da imagem. 
Repito incessantemente isso e dessa forma vejo meu desejo trocando de pele, como um casaco que passa por vários corpos e parece ganhar a cada vez mais solidez, mais razão de ser. 
Bruno de Abreu, 2020

Instagram: @brunodeabreu
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