MANIFESTO – ARTE CRUEL 
Victor de Lucca 
Julho de 2021 – Santos 
O significado macabro instituído pelo cristianismo em expressões como: crueldade e sacrifício – é uma criação constante e paralela ao real e natural. A ideia deturbada do sacrifício cristão vem para perdurar a dor e martirizar o invólucro da alma (corpo), é para difundir a constância de “piedade” e por consequência o controle dos instintos, dos saberes e da própria consciência. Há um desalinho com a ideia genuína de sacrifício, o instante não existe e o ato de martírio é deturpado. A ideia do sacrifício primal, descrito por autores como Georges Bataille, tem como significado o movimento. Dentro das artes visuais, podemos interpretar como a constante vontade de transcender/transfigurar, compreender que o ato da ação destrói, não o ser mas os laços de subordinação que o aprisionam. O ato descrito como “violento” – praticado por algumas ações de mutilações dentro da ideia de uma arte sacrificial, ou como acredito que deva ser sua nomenclatura: a arte cruel ou exercício da crueldade, é a afirmação profunda do sacrifício, sem a intervenção da interpretação rasa das religiões monoteísta. Transcende (Sobrepuja ou transpassa) a violência e a crueldade aos sistemas de opressão e seus intolerantes ditames de dominação. Apercebe-se imagens que instigam, mesmo que por instantes, à apreensão e angústia, despertam a nostalgia da iminência, à altura da qual só a “violência” do oprimido contra o opressor tem a força de nos elevar. No momento em que tentamos compreender a redução do Homem ao estado de coisa (o chamado capital humano) e não mais como um animal racional e sua relação natural com a vida e morte. As ideias de Bataille em sua reintrodução do sacrifício da antiguidade - na tentativa de compreensão da sexualidade, interditos, transgressão, capitalismo, impacto da obra industrial etc. - possam conduzir e romper laços de subordinação que aprisionaram e aprisionam os Homens. Mas o foco da arte cruel deve ser - não uma luta contra a produção ou progresso, mas sim contra a revelação de um mundo onde a coisa reduziu tudo e mecanizou todos. Hoje, mais do que nunca, é premente devolver ao sacrifício seu significado originário e retira-lo do seio cristão. Pois o sacrifício da cristandade – cooptado pelo sistema neoliberal – revela a miséria das posições equívocas, as quais o Homem e a sociedade perpetuam o constante flagelo e martírio por um bem maior, e de um sistema econômico em constante convulsão e embate: o Deus cristão tem uma conotação mercadológica no século XXI. O sacrifício neoliberal, que só pune o mais fraco e reproduz o ciclo plutocrático, está no cerne de um sistema esgotado e falido. Os acontecimentos contemporâneos só reafirmam a sua falência – pandemias globais, crescimento das desigualdades sociais e mudanças climáticas. O cérebro da arte cruel foca em retomar o debate sobre o sacrifício antigo conduzindo ações que toquem em tensões sociais e econômicas, ações que resistem mesmo com as tentativas típicas da racionalidade neoliberal em extirpa-las (na sua tentativa de reduzir o Homem a capital humano sem a sua validade política). Em se tratando de artes visuais situadas e sitiadas por essa premissa econômica, em que o artista se tornaria apenas um grande exercício empreendedor, em que todo pensamento político já está previsto dentro da atuação de mercado. Talvez esses questionamentos estejam voltados para uma dessemelhança possível, um retorno à ideia inicial de deformação das formas humanas ou o sentido sacrifício em seu verdadeiro significado – o significado não messiânico. Mas, métodos de criação ou exercícios de crueldade, em que a função é a criação de imagens deformadas e mutiladas para borrar as linhas mercadológicas, reatualizariam e refariam a ideia de corpo, ele que é desfigurado e reconfigurado diversas vezes. Agora, as perguntas necessárias são: o corpo aguenta mais mutilações? Há bases para questionar o capital humano e seu impacto na ressignificação do sacrifício, principalmente na leitura das artes? Na arte da crueldade, tais perguntas são respondidas ao criar ações que diagnosticam, denunciam e reafirmam essa fragmentação nos significados de sacrifício, transgressão e deformação, sempre remetendo ao fator primal e em consonância ao ser natural. A constância da transgressão também deve ser levada em conta dentro do interdito, como também sua previsão. Contudo, o limiar entre constância, elevação e diminuição, há uma imprevisibilidade e muita expansão fora dessa previsão, e são patamares diferenciais para a solução do interdito. Há muitos desafios e dificuldades como: resistir e sobreviver ao enfrentamento num sistema que pressiona a fixação do homem como apenas um objeto ou coisa. É premente transgredir e insurgir – mesmo que minimamente. Sob amarras de subordinação, constatamos desde o fim do século passado uma gama de ações performativas que abordam a imagem desse corpo sacrificado ou martirizado, em busca de transgredir e insurgir tais amarras. Assim, devemos levar o artista que envolve o sacrifício sobre um signo de excesso e martírio ao nível em que a representação – nas mais diversas imagens e sentidos – um corpo que se destrói e reconstrói para criar figuras, mesmo que dentro da estratégia narcísica do neoliberalismo para (o desde si) disseminar discursos políticos, sociais, éticos, indenitários que denunciem a dominação opressiva do sistema. Para concluir, em uma alusão de Bataille sobre o corpo sacrificial e o exercício proposto de uma crueldade explosiva ao ponto de ser uma crítica à ação antinatural dos Homens: elevados a sacerdotes, mártires, santos e governantes da terra em que não são nada além de Homens.
Instagram: @victordeelucca
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